Odd Nerdrum e Kitsch
O termo ‘kitsch’ se origina em meados de 1880 nos ateliês em Munique e ele é comumente associado a uma arte que expressa sentimentalismo ou que tende a representar narrativas dramáticas que apelam, dessa maneira, às emoções daqueles que a observam. Assim, o termo kitsch passou a ser usado, de forma pejorativa, a toda pintura que se contrapunha aos valores da arte moderna.
Kitsch era então considerada uma pintura de imitação barata, sentimentalista e com finalidade narrativa. É preciso se compreender que não há pintura como representação de uma narrativa indissociável dos apelos aos sentimentos e à imitação, no sentido aristotélico de mímeses.
Em 1996, Odd Nerdrum leu o ensaio sobre kitsch de Hermann Broch, em que se descreve o produtor de kitsch como alguém somente preocupado com apelos emocionais, negligente de sua própria época e interessado em aprender as técnicas dos mestres do passado.
Deste modo, para Nerdrum a identificação foi imediata uma vez que foram esses aspectos que mais se aproximaram da concepção filosófica de sua obra. Odd, então, revitalizou o conceito de kitsch atribuindo este conceito a seu próprio trabalho como pintor e lhe conferiu um significado mais positivo, significado este expresso em seis aspectos basilares elencados a seguir:
- Classicismo, Mito e Atemporalidade
Alguém que produz um trabalho kitsch não o faz em sintonia com tendências e modismos de sua época, contudo busca as culturas e as belas obras canonizadas do passado. Como um pintor renascentista e um escultor helenista, ele trabalha em um horizonte mitológico e desenvolve imagens arquetípicas.
Se Rembrandt estivesse vivo e trabalhando no século XXI, sua obra seria designada como kitsch. O mesmo seria dito de qualquer pintor figurativo clássico ou pintor que expressa sentimentalismo antes do advento da polarização entre Arte e Kitsch que ocorreu no século XIX.
Isto explica porque Andrew Wyeth foi apelidado de “o maior mestre kitsch vivo” por um antigo curador no MoMA¹. Sendo que sua natureza é profundamente antagônica ao presente, como Theodor Adorno sugere², o kitsch sempre estará em conflito com o governo.
¹USA Today. Maria Puente, American painter Andrew Wyeth dies at 91 in Pa ²Adorno, Theodor W. Essays on Music.
“Kitsch e Mito são ambos tentativas históricas para se viver fora da história.”
(Thomas Elsaesser, historiador de cinema.)
2. Imitação e Ausência de Originalidade
Em uma definição renascentista, a imitação é um ato de representar um objeto como ele deveria ser na sua forma mais perfeita. Desta forma, kitsch não é um ditado mas um estudo da natureza.
Um criador de kitsch não imita somente a natureza mas também a excelência que está imbricada na técnica do trabalho manual de seus predecessores. Isto é o que Clement Greenberg descreve como sendo “sugar o sangue vital de culturas do passado.”³
³C. Greenberg: Avantgarde and kitsch.
Os antigos mestres imitavam uns aos outros também, como se pode ver no exemplo acima. Outro imitador é Rembrandt que parece ter copiado o método dos últimos trabalhos de Ticiano, della machia, uma técnica que Ticiano pegou de Massacio ou Apelles.
O fato de o criador kitsch está preocupado com imitação e o contar de histórias, criar narrativas, faz com que consequentemente a sua meta se defina por essa busca em alcançar um trabalho impessoal em que o ego do artista saia de cena para que em seu lugar a obra-prima perdure em sua atemporalidade mítica.
3. Identificação e Experiência Direta
No kitsch, o corpo humano deve ser representado de uma forma que possibilite o reconhecimento e deve ser retratado o mais sensual possível — sensual não apenas no aspecto erótico do termo mas também no sentido que deve afetar e apelar aos sentidos. Não existem significados profundos em uma obra kitsch. Todo o significado está presente na superfície.
O kitsch, então, não tem o efeito de chocar ou causar estranheza no observador mas de efetuar uma identificação imediata entre aquele que aprecia o kitsch e a obra mesma. O kitsch não apresenta inúmeras camadas, umas sobrepostas as outras, de significados em que se estabeleceria uma hermenêutica que se desvelasse o real sentido da obra, contudo o kitsch exige uma experiência direta em que sua significação é apreendida na sua superfície sem recorrer a uma ordem semântica profunda.
Greenberg nos dá um exemplo do campesino que não tem tempo ou a possibilidade para “condicionar” a si mesmo a apreciar um Picasso. No fim das contas ele se voltará para o kitsch porque ele terá as condições “para apreciar o kitsch sem esforço”.⁴
⁴C. Greenberg: Avantgarde and kitsch.
Esta crítica de Greenberg é compreensível uma vez que o kitsch retira todo o poder do crítico de arte de estabelecer uma avaliação da obra em que apenas poucos ‘iluminados’ seriam capazes de revelar o sentido profundo desta mesma obra. Este empoderamento do crítico de arte é atacado pelo kitsch já que a obra kitsch possibilita uma compreensão direta sem recorrer a subterfúgios intelectuais que impossibilitariam o indivíduo mediano e sem formação acadêmica de compreendê-la.
4. Fórmula, Técnica e Aprendizado
“Kitsch é a arte que segue regras estabelecidas em uma época em que todas as regras, em matéria de arte, estão sendo colocadas em questão pelos artistas.”
( Harold Rosenberg. The Tradition of the New)
O fato de o tema dever ser facilmente reconhecível faz com que a habilidade técnica seja a mais importante qualificação do kitsch. Partindo do princípio que a mais importante finalidade do kitsch é produzir a imortal obra-prima, um esboço não é suficiente.
Prof. R. C. Solomon, autor de “Em Defesa do Sentimentalismo” descreve o kitsch como “virtuosidade técnica” e “conhecimento explícito da tradição”.
A habilidade técnica é aprendida através de anos de dedicação de estudos para o desenvolvimento da artesania da obra, habilidade esta passada do mestre-pintor ao discípulo, criando assim uma tradição viva e forte que se perpetua por gerações.
Além de contribuir para o desenvolvimento do pintor a habilidade técnica é útil como um parâmetro, uma medida em que a obra do próprio pintor pode ser avaliada e julgada. Sem esta habilidade técnica como referência para a avaliação da obra se forma uma tradição de críticos e não uma tradição de mestres e discípulos que é o que vemos no atual sistema da arte moderna. Deste modo, o criador se vê cativo ao sistema dos críticos de artes, agências, galerias, museus etc. Ele ficará mercê às definições, julgamentos e ao poder daqueles que dirigem, coordenam e controlam este sistema.
5. Pathos e Ausência de Ironia
Kitsch não representa a dicotomia entre o abstrato e a pintura figurativa, mas, sim, a da indiferença versus a expressão apaixonada. Esta é a razão da obra de Andrew Wyeth ser kitsch enquanto que a obra de Lucian Freud não é considerada kitsch.
“Kitsch é totalmente incompatível até mesmo com a mais moderada forma de questionamento; isto é, a ironia. Kitsch sempre significa aquilo que ele diz, e o diz de forma literal. Não há duas maneiras de ler o kitsch. (Na medida em que o kitsch começar a ser interpretado como ironia, ou paródia, ele deixa de ser kitsch.)”
( Tomáš Kulka. Kitsch and Art)
Kitsch não deve ser confundido com o Camp o qual é irônico. A maioria dos críticos do kitsch estão de acordo que o camp não tem lugar no kitsch. Ao contrário do camp, o kitsch pode estimular uma reação emocional irrefletida⁵ e pode produzir lágrimas como a cebola⁶.
⁵Kulka. Kitsch and Art. ⁶ Karpfen, Fritz. Der Kitsch: eine Studie über die Entartung der Kunst.
6. Beleza
“A deusa da beleza em matéria de arte é a deusa do kitsch.”
( Hermann Broch. The Evil in the Value System of Art)
A conclusão inevitável é de que o kitsch está mais interessado na beleza, mas não no sentido moderno do termo. Pois, se em relação ao kitsch trata-se de uma “identificação sem esforço”, a beleza em questão é necessariamente uma beleza da superfície e não poderá conter nenhuma significação mais profunda ou oculta.
Não se trata aqui apenas de uma questão de estética, mas da questão da ética do kitsch⁷, como Broch argumentou, “sua finalidade é enganar o observador e pôr em tentação o ingênuo buscador da verdadeira luz.”⁸ O kitsch seria a maçã proibida no paraíso perdido da arte moderna.
⁷Hermann Broch. The Evil in the Value System of Art. ⁸C. Greenberg: Avantgarde and kitsch.
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